Por 4 anos, convivi quase que diariamente com a Celeste. Por 2 anos, quase que diariamente com a Shara. E sei que essa convivência poderia significar pouco. Afinal, muitas vezes estamos nos mesmos lugares que as pessoas e não nos aproximamos delas de fato. Evitamos nos envolver. Envolvimento geralmente implica responsabilidade, implica se importar. Implica querer estar junto, querer dividir momentos, implica sentir saudade. Implica, e essa é a parte que faz com que muitas vezes a gente escolha não se envolver, sofrer de forma irreparável em momentos assim.
Nosso pesar é porque escolhemos o envolvimento. E por isso nossas lágrimas, nossa revolta, nossa incredulidade diante do inesperado. Mas neste momento eu quero falar do que ganhamos com essa proximidade.
Para isso, vou emprestar algumas palavras de Tatiana Bilhar, que também compartilhou comigo o imenso privilégio de ser professora de duas meninas-mulheres tão brilhantes e as descreveu tão gentilmente.
“Shara e Celeste eram vida, luz e alegria.
Shara era uma mãe dedicada. Uma aluna que entregava seu melhor. Uma jornalista que buscava mudar o mundo, uma história por vez. Espontânea e carinhosa, transformava positivamente a vida dos que estavam ao seu lado. Queria trabalhar na TV, e assim o fez, brilhando todos os dias nas mais variadas matérias.
Celeste era igualmente brilhante. Uma alma sensível e gentil, que traduzia o mundo em textos deliciosamente bem escritos. Ela passeava pelas palavras, colhendo a melhor forma de contar histórias que incomodavam na mesma medida em que emocionavam, tal como se espera dos grandes jornalistas. Queria ser escritora. E foi: formou-se escrevendo o primeiro livro-reportagem já produzido em nosso curso.
Ousadas, carismáticas, divertidas, amorosas, elas propagavam alegria e sororidade.”
Agora, eu peço licença para compartilhar alguns momentos nossos, porque ser professora delas me fez ter retratos bastante cotidianos de tudo isso.
Shara se achava péssima no texto escrito. Com tanta facilidade para se expressar na fala, no trato direto com as pessoas, ela se achava lenta na hora de colocar tudo no papel. Expliquei a ela que era coisa de quem pensa rápido demais, que era só falta de costume. E ela se acostumou, se empenhou, porque não era de meio termos. Insistia, reescrevia, pedia várias vezes que eu relesse o texto antes de publicar, que eu relesse o roteiro antes de gravar. Me agradecia muito pela ajuda, mesmo eu dizendo a ela que eu estava ali para ajudá-la mesmo. Em nossa última conversa, quando já éramos colegas de trabalho, não mais professora e aluna, ela disse que estava com saudade e se desculpou pelo incômodo de mais uma vez pedir que eu revisse um texto dela. Eu disse que a saudade era recíproca e que ela não incomodava nunca. Nunca poderia ter sido um incômodo ter a sorte de conviver com você, Shara.
Celeste ansiava sempre por mais. Quando a vida a levou para os caminhos da redação publicitária, ela pediu mais indicações. Pediu aulas extras sobre assuntos que eu dominava, mas que não cabiam nos planos de ensino. Ela não se contentava com os planos comuns. E fazia com que todos a sua volta também pudessem mais. O que eu mais admirava nela era a disposição de sempre marcar em palavras o que sentia pelos outros. Ela encontrava o melhor nos outros e fazia questão de registrar para que o mundo lesse o que ela era capaz de sentir. No livro que publicou, ela eternizou a história da minha mãe. E fez um bem que talvez ela não pudesse mensurar ao fazer com que a vida de uma mulher comum virasse livro (que minha mãe releu diversas vezes, encantada demais por estar viva para receber uma homenagem tão grande). Nossa última conversa foi há poucos dias. O artigo da Celeste, que eu tive o prazer de orientar, vai ser publicado em breve. Ela estava feliz em ver, nas palavras dela, nosso trabalho ainda florescendo. Celeste, meu bem, tudo que você fez vai seguir florescendo eternamente porque você plantou vida.
Por fim, a última lição que elas me deixaram (porque ser professora de pessoas iguais a elas faz com que a gente muito mais aprenda do que ensine) é que sejamos tudo o que queremos ser. Shara poderia não ter sido mãe, tão jovem, tão promissora. Floresceu Alice. Poderia ter desistido da universidade, com tantas atribulações. Formou-se a jornalista admirada por todos. Celeste saiu para o mundo para conquistar sonhos que não cabiam no jardim de casa. Enfrentou a distância das mulheres que mais amava, a mãe e a avó, para seguir o próprio rumo. Poderia ter escolhido caminhos mais fáceis, poderia até ter escolhido um TCC menos desafiador, mas optou pelo livro. Tornou-se de fato a escritora que queria ser. Talvez a vida soubesse que nossas meninas teriam uma passagem breve e as fez com tanta sede de vida. A lição é que honremos suas memórias sendo o melhor de nós e carregando, para sempre, o melhor delas.
Texto: Julliane Brita